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Encontro e desisto de encontrar [conto]


SUSANA NÃO ESTAVA NO BALANÇO. O brinquedo vazio, em movimento, carregava um implícito fato.

“Susana?”, chamou sem elevar a voz.

Os olhos guiavam o olhar. Eles procuraram em um canto e depois outro.

“Susana?”, desta vez um tom acima.

Os pés moviam o andar por ora calmo.

“Susana? Estou chamando.”

As mãos conduziam braços em 60° graus. Que logo se tornaram 70°, 80° e depois o impulso que lançou leve o correr.

“Susana? Última vez que chamo!”. Entretanto, haveria outras.

“Susana? Susana?! Susana!!”

O homem inspecionava cada possibilidade. Sob os brinquedos esculpidos em madeira bruta, por detrás das latas de lixo com suas indicações seletivas e então em cada um dos bancos de concreto. Susana não estava em lugar algum. E essa impossibilidade consolidou o início do tormento. Dois corpos não podem ocupar um mesmo espaço na mesma medida em que um corpo não pode estar em lugar nenhum.

Retornando ao local de origem, o homem encontrou o balanço passível à inércia. Perdendo as forças, sob o julgo da gravidade, os joelhos tombaram o corpo ao chão. A diminuição repentina de temperatura. O odor acre. A visão turva e a perda de consciência. O desmaio no instante seguinte.

“Felipe? Você me ouve, Felipe?”, a voz provinha de um corpo ofegante.

Conduzindo as mãos trêmulas e suadas até o rosto do homem, a mulher tornou doce a palavra.

“Fê? Responde, Fê! Estou aqui.”

Subitamente os olhos abertos. Compenetrados como o olhar da águia que avista sua presa. Em seguida, como se fosse aquele o mais sombrio dos mundos, o homem exige presença imediata.

“Susana! Onde você está?”

Em um movimento célere, o homem afasta a mulher e dirige o olhar pela praça. Seus movimentos desordenados conduzindo o raciocínio a lugar nenhum.

“Felipe, onde está Susana?”

“Ela sumiu. Ela sumiu!”

“Como assim?”

“Não sei. Ela simplesmente desapareceu. Quando olhei, não estava mais. Susana!”, ele gritou como nunca. “Susana!”

A mulher segue o homem. A presença de Susana exigida por ambos. A praça pequena ou grande o suficiente para receber tão poucos. Ou ainda de proporções infindas, quando se é um pai e uma mãe à procura da filha.

Ninguém oferece ajuda. Na manhã de 10 de novembro de 1991, nenhum orador de elevado padrão moral os ampara e diz que tudo ficará bem. Todos eles estão em júbilo, com seus corpos arrebatados defronte seus televisores multicoloridos. Cada martelada transmitida, cada novo esfarelar de concreto e sempre que alguém cruza o muro, todos cantam “Deine Zauber binden wieder, was die Mode streng geteilt”. Vocalizam uma ode à alegria. Todos que não o homem e a mulher.

Os gritos por Susana expelem lava fresca. Queimam a pureza. Desarmonizam o divino. Profanam a beleza. São o desconcerto executado pela ausência da batuta.

Exausta, ainda que não ato de resignar, a mulher observa o homem e silencia. Estoicamente, exige dele um segundo de neutralidade. Um momento ínfimo para centrar os pensamentos. Ressignificar o que não pode ser uma hecatombe grega. Racionalizar sob a razão alemã.

O quase silêncio, entretanto, sopra uma lembrança que oxida a memória. Como uma tela pintada com as cores de um crime não resolvido. Onde crianças que nunca mais serão encontradas vão sendo esquecidas.

Há duas décadas uma fenda foi aberta na plácida cidade alemã de Altenberg. Como o mais nefasto dos dias imaginados, três crianças desapareceram. O início das buscas. O desespero de não chegar a lugar algum. Nenhum rastro, nenhuma pista. O caso arquivado. Um povoado em luto e depois a vida que precisava seguir. Poucos ainda querendo saber e, por fim, um tapume confeccionado com esquecimento selando a fenda. O espaço sendo preenchido até tornar-se lenda. Uma cidade sendo lembrada como palco de uma fábula de horror mal encenada. O papel de vilão rascunhado e reescrito até que ninguém tenha dúvida: Foi a Besta!

O muro de concreto caí e a Besta transpassa a fenda outra vez.

“Foi ela!”, o homem retoma como posse a fúria. “Foi Ela!”

A mulher compreende o que ele diz. E não hesita. O que se tem de mais sólido, talvez tão real quanto uma fábula saxônica, é o saber coletivo de que a Besta habita a cratera do Pinge. De onde se encontram, uma pequena faixa de bosque os separa de lá. A cratera, esculpida ao longo dos séculos por mineradores de ferro, fica a cerca de quinhentos passos.

“O Pinge. A Besta levou Susana para o Pinge”. Enquanto corre para a aresta do bosque, a mulher deixa clara a intenção.

Em minutos, a enorme cratera. A boca envergada em um diâmetro de 400 metros. Uma garganta profunda com seus 150. À beira desse precipício, a mulher e o homem buscam o lugar percorrido pela Besta.

O caminho. Certamente é aquele o caminho. Ainda que possa ser a marca deixada pelos mineradores, é o único espaço possível.

Descem em descompasso. Buscam no solo um sinal de Susana. Todo crime deixa rastro. Mesmo os engendrados por bestas como aquela. Se no passado o pouco que se teve não servira para nada, dessa vez levaria ao encontro.

“Susana!”. O nome ecoa como estrondo em geleira desfeita. No entanto, a única resposta vem das pedras que rolam em queda livre.

Um grunhido. Uma águia recostada em sua pedra. Atenta, observa um homem e uma mulher no clímax que carrega o desespero. O olhar aguçado da ave observa com nitidez tudo que seguirá.

A sensação de ouvir a voz de Susana faz com que a mulher abandone a trilha. Enquanto desloca o corpo, palavras são concedidas. A mãe garante a filha que irá buscá-la. O homem segue a mulher e, sem poder coisa alguma, vê o momento em que ela escolhe o caminho sinuoso.

A águia enverga asas. Exatamente como fez ao ser imortalizada no Brasão de Armas da Alemanha. Um novo grunhido ao encontro do grito do homem.

O homem encontra a Besta. Inflexível. Intransigente. Obstinada no ato de desumana crueldade. Um movimento sem clemência. A mulher consumida até as entranhas. O homem, como desfecho inadiável, desistindo do encontro ao arremessar seu corpo no abismo.

Naquela manhã, ainda sem saber, os habitantes de Altenberg derrubaram a barreira erguida com um frágil tapume. A águia reinou pelos ares e voou sobre o povoado. O grunhido de alerta não encontrou ouvir atento.

Não naquela manhã.


*Conto publicado em 2019 na antologia "Nem tudo foi dito", obra organizada pelo doutor em Teoria da Literatura Douglas Ceccagno.