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Mostrando postagens com o rótulo conto

Esqueço e volto a lembrar [conto]

ABRI A CAIXA e não havia nada. Estava vazia, mas não deveria. O combinado era que tudo estaria ali. Deixei observações claras sobre quais produtos gostaria de receber. Gostaria é um jeito menos agressivo de dizer quero . O que eu queria era querer e ponto final. Se não fosse possível, que dissessem “Não será possível”. O pedido foi finalizado e tudo fica subentendido. Eu escolho, quero, digo que gostaria e ou tem ou não tem. Se tem, o pedido é finalizado e no tempo previsto a caixa vem. A caixa e dentro os produtos.   Parece que algo não ficou claro.   Ninguém compra caixa de papelão vazia. Nem mesmo os que desejam enfiar algo dentro dela. Havendo tantas disponíveis gratuitamente em redes maiores ou menores de supermercados, a venda de caixas de papelão vazias não seria promissora. E não é. Procure por caixa de papelão vazia no Mercado Livre, Enjoei, OLX, Facebook, classificados de qualquer tipo, cartaz colocado no poste, brechó que também vende de tudo. Ninguém vende caixa d...

O buraco [conto]

   Quando chegou a notícia da morte da Ana, o Astor Heck começou a cavar. Isso lembro bem. Quando o tal áudio de dezessete segundos foi mandado no grupo, ninguém sabia direito. No início era só a voz de um homem, mas quando se anunciou médico, e ele falava feito médico, todo mundo levou a sério. O tal doutor, se é que era, porque onde já se viu anunciar morte desse jeito, dava o anúncio de falecimento de uma jovem no hospital Santa Cruz. Não dizia a causa, mas naqueles dias todos pareciam saber que só poderia ser coisa do coronavírus.    Acho que foi o Schultz quem sugeriu o nome Ana. O Astor tinha uma filha com esse nome e ela trabalhava de enfermeira no hospital, só que o infeliz do Schultz não disse Ana Klock, e poderia ser Ana Heck.    Eu nem sabia que o Astor Heck tava no grupo “Barbeiragem Rio dos Bugre”. Ele apareceu não sei de onde e a mensagem dele dizia “Ana Heck?”, e não, não era a Ana do Astor, só que a demora do Schultz em responder me deu nos ...

A castanheira, a cura e o mundo [conto]

A planície recobre o solo estéril. Olha a castanheira, suas folhas e frutos. Na terra, as raízes profundas buscam alimento. Uma família de aves migratórias repousa num dos galhos.  Anunciada a cura para o novo vírus e o solo ainda é o mesmo, as raízes são as mesmas, os mesmos pássaros nos galhos mesmos. Tenta se mover e não consegue. Permanece onde está e toca as paredes, mas não é seu lar. Inspira a terra seca, mas não é seu chão. Ouve o peito apertado e quer saber o que falta. Expira e a brasa ganha força feito castanheira quando encontra água. Seu peito é lar e nele há uma chama. Envolve a castanheira com seu longo abraço e vê as aves seguirem alto. Abandona as paredes, a terra. Vai buscar quem lhe quiser abrigo. Leva consigo somente o que pode carregar dentro do peito. O mundo é uma vasta planície sobre um campo fértil. 

Encontro e desisto de encontrar [conto]

SUSANA NÃO ESTAVA NO BALANÇO. O brinquedo vazio, em movimento, carregava um implícito fato. “Susana?”, chamou sem elevar a voz. Os olhos guiavam o olhar. Eles procuraram em um canto e depois outro. “Susana?”, desta vez um tom acima. Os pés moviam o andar por ora calmo. “Susana? Estou chamando.” As mãos conduziam braços em 60° graus. Que logo se tornaram 70°, 80° e depois o impulso que lançou leve o correr. “Susana? Última vez que chamo!”. Entretanto, haveria outras. “Susana? Susana?! Susana!!” O homem inspecionava cada possibilidade. Sob os brinquedos esculpidos em madeira bruta, por detrás das latas de lixo com suas indicações seletivas e então em cada um dos bancos de concreto. Susana não estava em lugar algum. E essa impossibilidade consolidou o início do tormento. Dois corpos não podem ocupar um mesmo espaço na mesma medida em que um corpo não pode estar em lugar nenhum. Retornando ao local de origem, o homem encontrou o balanço passível ...

Corro e desisto de correr [conto]

A ESCULTURA TEM FORMA DE TARTARUGA. Lapidada em cinco centímetros de ágata cor musgo. Textura lisa, como água petrificada. Sabor mineral, como chardonnay de Chablis. O cheiro, um não-cheiro. Rocha musgo, lisa, mineral e inodora. Refogou cebolas selvagens em shoyu de coco. Ingrediente importante no prato principal. Depois, crème brûlée, que harmoniza com qualquer refeição. O resto se pode imaginar. E tanto faz. Na memória os detalhes são lembrança maculada. Quando uma tartaruga marinha é esculpida em pedra inodora, no tamanho que for, ela não significa coisa alguma. Que seja tartaruga de água doce ou jabuti que habita borda de mata. Uma pedra, em formato de tartaruga, nada diz.  Nos detalhes, a lembrança volúvel molda a ingênua memória. Foi preciso explicar isso uma centena de vezes. Quando finalmente se cansou, e desistiu. Antes disso, no entanto, você correu como se correr fosse a única possibilidade. Deixamos a cidade de Nantes, em definitivo, duas semanas dep...