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Esqueço e volto a lembrar [conto]

ABRI A CAIXA e não havia nada. Estava vazia, mas não deveria. O combinado era que tudo estaria ali. Deixei observações claras sobre quais produtos gostaria de receber. Gostaria é um jeito menos agressivo de dizer quero. O que eu queria era querer e ponto final. Se não fosse possível, que dissessem “Não será possível”. O pedido foi finalizado e tudo fica subentendido. Eu escolho, quero, digo que gostaria e ou tem ou não tem. Se tem, o pedido é finalizado e no tempo previsto a caixa vem. A caixa e dentro os produtos.

 

Parece que algo não ficou claro.

 

Ninguém compra caixa de papelão vazia. Nem mesmo os que desejam enfiar algo dentro dela. Havendo tantas disponíveis gratuitamente em redes maiores ou menores de supermercados, a venda de caixas de papelão vazias não seria promissora. E não é. Procure por caixa de papelão vazia no Mercado Livre, Enjoei, OLX, Facebook, classificados de qualquer tipo, cartaz colocado no poste, brechó que também vende de tudo. Ninguém vende caixa de papelão vazia. A não ser que se queira uma quantidade mínima de 10 unidades. Eu só queria uma caixa e dentro da caixa meus produtos. E se fez a confusão.

 

Quem sabe o operador de vendas online ficou na dúvida. E se eu quisesse comprar apenas a caixa vazia? E se meu desejo fosse encontrar um anúncio “Vendo Caixa de Papelão Vazia”? E se eu estivesse em desespero? Mudando de casa no final do dia e nenhum supermercado tem caixa disponível em tamanho apropriado para algo específico?

 

Quando eu era criança; e talvez tenha feito algo similar dois anos atrás, eu ganhava mesada suficiente para comprar quatro Elma Chips por dia. Não que eu fosse rico. O salgadinho é que era barato. Só que eu não estava interessado, depois de comer um ou dois pacotes, dependendo do dia, de comer os outros dois que eu ainda poderia comer, se quisesse. O que eu gostaria, e aqui gostar vem como sinônimo de poder, eram os cards colecionáveis de Pokémon.  Pedi ao caixa do supermercado se seria possível levar somente os cards. “Não”. Pedi ao meu melhor amigo se ele queria comprar o pacote pela metade do preço. “Quero”. Não vem com o card. “Então, não”. Procurei meu segundo melhor amigo e depois o primo dele, que não era meu amigo porque um ano antes levei uma bolada no saco e fiquei sem ar, gemendo no chão e a última coisa que eu queria naquele momento era um pedido de desculpas, mas também não precisava rir daquele jeito e nunca mais fomos amigos, e todos disseram que se não havia card, não havia negócio.

 

Ninguém leva as necessidades de uma criança a sério.

 

Fosse um problema de adulto, esse dos cards confiscados dentro de um pacote de salgadinhos que depois de dois ficava salgado demais e enjoativo demais, teríamos encontrado soluções rápidas e lucrativas.

 

Se eu não tivesse seguido pelo ramo de venda de peças para maquinário industrial, e não sei como isso foi acontecer porque eu odeio o que faço, eu poderia ter desenvolvido algum tipo de solução para aquilo. E se eu estivesse agora mesmo operando um sistema de vendas online e alguém finalizasse uma compra com itens variados, eu me perguntaria se aquela pessoa não estaria interessada apenas no recipiente de papelão que abriga os produtos. Uma variação dos cards da Elma Chips.

 

Minha caixa vazia poderia não ser um erro. Seria a tentativa autêntica de alguém que deseja solucionar um problema que, de outra maneira, não seria possível resolver.

 

A caixa, entregue na porta de minha casa por um jovem apressado e sem identificação, foi entregue vinte horas depois de o pagamento ser efetivado. Foi o que disse o vizinho que a recebeu. Eu não estava em casa. E quando o vizinho veio deixar a encomenda, dois minutos depois de receber, e achou leve demais e por que uma caixa tão grande para algo que poderia ser uma carta e dentro do envelope um vírus? eu continuava não estando em casa. Ele resolveu não correr o risco de se contaminar e deixou a caixa na frente do meu portão.

 

De longe, voltando do trabalho que já não era remoto e todos agiam como se houvessem esquecido, vi que havia algo na frente de casa. Duas casas antes, decidi que deveria ser uma caixa vazia que caiu de alguma lixeira e voou ou rolou porque não venta quase nada nessa época.

 

Na parte superior da caixa, vi meu nome borrado e todos os dados eram tinta escorrida. O vizinho espiando pelo portão de metal gritando “O rapaz pediu pra eu receber”. Demorei para agradecer porque não sabia que a coisa era comigo. Quando ele repetiu “O rapaz pediu se eu poderia receber” e havia algo como “eu já passei álcool, por precaução”, resolvi agradecer sem estar convencido.

 

Um fragmento de lembrança e recapitulei a compra que fiz, a previsão de entrega, minha ausência no horário comercial e a generosidade nunca desinteressada de meu vizinho. Ele seguia me olhando. Meu pagamento em forma de agradecimento parecia não ser suficiente pelo trabalho realizado. Ele esperava que eu dissesse o que havia dentro da caixa. Eu sei. Só que a verdade era que agora nem mesmo eu estava seguro do que havia encomendado. Um novo lapso na memória e eu realmente não conseguia lembrar. O vizinho agora me olhava como se eu fosse perigoso. Minha vontade era gritar “tá olhando o quê?” e depois um “Ahhhhh”.

 

Fiz um movimento com a cabeça, já que as mãos estavam ocupadas carregando algo grande demais e leve demais. Ele respondeu com um aceno de mão que poderia parecer gentil se eu não o conhecesse de outras ocasiões.

 

Entrei em casa com a caixa vazia e a coloquei no meio da sala. Bem onde antes havia uma mesa de centro. Em frente ao local onde ficava um conjunto de sofá mais poltrona e atrás da poltrona um quadro emoldurando uma paisagem colorida e sem nitidez.

 

As largas fitas adesivas que mantinham a caixa fechada foram retiradas facilmente. O que não é comum. Como se quem a colocou quisesse me dizer “Não desista”.

 

Cada uma das abas abertas caiu sobre cada um dos seus respectivos lados. Dentro dela, aquele enorme espaço vazio, escuro, talvez úmido. Poderia haver algum tipo de inseto peçonhento em um dos cantos. Uma aranha marrom. Um escorpião amarelo.

 

Apontei o celular dentro da caixa e a lanterna emitiu uma luz tão poderosa que não sei porque isso não é anunciado pela empresa como uma especificação que torna o produto mais atraente do que o dos seus concorrentes.

 

Não havia nada.

 

Exceto uma meia folha de papel que estaria em branco se não houvessem palavras.

 

As palavras eram poucas. Ainda assim, a informação contida em tão curta frase lançou meu corpo contra a parede e absorvi parte do impacto com as mãos e o restante com as costas. Houvesse uma quina de estante, um suporte de planta sem planta, minha cabeça em qualquer um dos dois objetos, fim da história.

 

Toquei partes do meu corpo e tudo estava bem. Na verdade haviam partes que eu nunca antes tocara, então a comparação entre o antes e o depois era pouco confiável.

 

Voltei até a caixa que agora reconhecia não estar vazia.

 

O bilhete estava lá. Ainda era o mesmo. A mesma frase, a mesma letra. O mesmo tamanho de papel. Um pouco amassada, por conta de meu susto repentino. Mas de resto, e o que importa é o conteúdo, seguia como na origem.

 

Com os dentes, cortei parte da fita adesiva e colei o bilhete na parte externa da caixa.

 

Caminhei por cada um dos cômodos, começando pela área de serviço que de todos era o que menos lembrança eu carregava. Depois pulei a cozinha e entrei no único banheiro que havia. O espelho já não estava, as duas escovas adultas e a infantil já não estavam, e a infantil foi substituída por uma adulta e depois era hora da adulta ganhar o mundo, as toalhas esquecidas, a tampa do vaso erguida, a resistência que queimava sempre em momentos não desejáveis. Nada estava. A única coisa que permanecia resistente e entranhada, era a memória. Sempre achei que um banheiro não era o suficiente.

 

Voltei até a cozinha porque nada poderia ser pior do que os cômodos que restavam. Naquele novo espaço, nada parecia com o que fora. Tantas vezes reclamei do tamanho da geladeira nova, do fogão novo, da mesa nova e porquê outra se podemos jantar na sala? O espaço ficando cada vez menor e meu corpo esbarrando em outro corpo. Os gritos quando a travessa de vidro acrescentou no piso frio os seus cacos entre as camadas da lasanha. Nos esbarramos e a travessa da janta de trinta e dois anos de união jogada no chão como se fosse tinta a óleo. Poderia haver alguém que emoldurasse tal travessa e tal lasanha no chão pálido da cozinha e o clamor de se ver um artista pós-contemporâneo em seu arroubo de genialidade.

 

O quarto menor. A janela deixada aberta recebia a luz que vinha de fora. Um corpo pequeno se deslocando pelo corredor, no meio da noite, até chegar no quarto maior, que era o nosso. A coceira das picadas de mosquitos em toda parte daquele corpo sem peso, e as minhas palavras eram sempre brutas naquela altura do sono interrompido e depois perdido. Eu sem saber porque era sempre comigo e caminhava pelo mesmo corredor levando aquele corpo no colo. Na manhã seguinte, ainda na cama, meu corpo reclamando para o corpo ao lado, que por sua vez sugeria ser melhor aplacar a coceira do que o medo do escuro.  

 

O quarto maior. Caberia tanta coisa, mas só consigo lembrar do formato da cabeceira da cama. Ali, quando antes havia um ali, recostado até tarde da noite porque haviam documentos, relatórios, estudos e qualquer coisa referente ao meu trabalho acumulado. Recostado, cobertas até a cintura, talvez um abajur, mas não tenho certeza de onde vinha a luz. Poderia ser do corpo ao meu lado, esquecido e perdido entre tantas coisas que deveriam ser feitas e as prioridades estavam invertidas e só agora é que dou conta, mas já foi.

 

No centro da sala da casa vazia, há uma caixa vazia para um homem vazio.

 

O tamanho exato, como anunciado.

 

Entrei na caixa e puxei cada uma das abas.

 

Não pude selar com a fita larga. Ainda que quisesse, a cola estava gasta.

 

Do lado de fora, se ainda estivesse onde deixei, um bilhete escrito por mim, remetido por mim e por mim recebido.

 

“Não existe espaço vazio. Tudo é lembrança.”