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O buraco [conto]

   Quando chegou a notícia da morte da Ana, o Astor Heck começou a cavar. Isso lembro bem. Quando o tal áudio de dezessete segundos foi mandado no grupo, ninguém sabia direito. No início era só a voz de um homem, mas quando se anunciou médico, e ele falava feito médico, todo mundo levou a sério. O tal doutor, se é que era, porque onde já se viu anunciar morte desse jeito, dava o anúncio de falecimento de uma jovem no hospital Santa Cruz. Não dizia a causa, mas naqueles dias todos pareciam saber que só poderia ser coisa do coronavírus.    Acho que foi o Schultz quem sugeriu o nome Ana. O Astor tinha uma filha com esse nome e ela trabalhava de enfermeira no hospital, só que o infeliz do Schultz não disse Ana Klock, e poderia ser Ana Heck.    Eu nem sabia que o Astor Heck tava no grupo “Barbeiragem Rio dos Bugre”. Ele apareceu não sei de onde e a mensagem dele dizia “Ana Heck?”, e não, não era a Ana do Astor, só que a demora do Schultz em responder me deu nos ...

A castanheira, a cura e o mundo [conto]

A planície recobre o solo estéril. Olha a castanheira, suas folhas e frutos. Na terra, as raízes profundas buscam alimento. Uma família de aves migratórias repousa num dos galhos.  Anunciada a cura para o novo vírus e o solo ainda é o mesmo, as raízes são as mesmas, os mesmos pássaros nos galhos mesmos. Tenta se mover e não consegue. Permanece onde está e toca as paredes, mas não é seu lar. Inspira a terra seca, mas não é seu chão. Ouve o peito apertado e quer saber o que falta. Expira e a brasa ganha força feito castanheira quando encontra água. Seu peito é lar e nele há uma chama. Envolve a castanheira com seu longo abraço e vê as aves seguirem alto. Abandona as paredes, a terra. Vai buscar quem lhe quiser abrigo. Leva consigo somente o que pode carregar dentro do peito. O mundo é uma vasta planície sobre um campo fértil. 

Como é ser um morcego? [as engrenagens]

O filósofo Thomas Nagel, em seu ensaio “Como é ser um morcego? [1974]”, afirma que nunca saberemos.  “Até onde eu consigo imaginar (e não vai muito longe), isso só me diz como seria me comportar como se comporta um morcego. Mas a questão não é essa. Quero saber como é ser um morcego para um morcego”. Entretanto, há outra pergunta que atormentaria o pobre Nagel: Como é ser um romancista? A resposta imaginária de Nagel, para a pergunta que ele poderia ter feito, imagino eu, seria algo “Até onde eu consigo imaginar (e não vai muito longe), isso só me diz como seria me comportar como se comporta um romancista. Mas a questão não é essa. Quero saber como é ser um romancista para um romancista”. George Elliot, que só recentemente descobri ser o pseudônimo de uma romancista inglesa de nome Mary Ann Evans, viajou no tempo para ajudar Nagel a encontrar uma resposta. Em seu ensaio sobre o realismo alemão [1856], Mary Ann “George Elliot” Evans sacramentou que “o maior benefício que devemos ao ...

Encontro e desisto de encontrar [conto]

SUSANA NÃO ESTAVA NO BALANÇO. O brinquedo vazio, em movimento, carregava um implícito fato. “Susana?”, chamou sem elevar a voz. Os olhos guiavam o olhar. Eles procuraram em um canto e depois outro. “Susana?”, desta vez um tom acima. Os pés moviam o andar por ora calmo. “Susana? Estou chamando.” As mãos conduziam braços em 60° graus. Que logo se tornaram 70°, 80° e depois o impulso que lançou leve o correr. “Susana? Última vez que chamo!”. Entretanto, haveria outras. “Susana? Susana?! Susana!!” O homem inspecionava cada possibilidade. Sob os brinquedos esculpidos em madeira bruta, por detrás das latas de lixo com suas indicações seletivas e então em cada um dos bancos de concreto. Susana não estava em lugar algum. E essa impossibilidade consolidou o início do tormento. Dois corpos não podem ocupar um mesmo espaço na mesma medida em que um corpo não pode estar em lugar nenhum. Retornando ao local de origem, o homem encontrou o balanço passível ...

Dan encontra Dan [entrevista]

DP: Em entrevista ao escritor Robert Melo, você diz que sua literatura é como um sonho. DP: Gosto dessa ideia e dizer isso é uma obviedade porque se não gostasse, não diria. DP: Pode ser mais objetivo? DP: Posso. Qual a pergunta? DP: Você escreve realismo mágico? DP: Não sei. Acho que essa pergunta deve ser respondida por outras pessoas; teóricos e críticos, por exemplo. Eu sou o escritor. DP: Que gosta da ideia de que sua literatura é como um sonho. DP: Não acho que essa ideia vá definir em qual sessão da livraria meus livros estarão. Veja, não acredito que o escritor deva se preocupar com isso. O texto perde potencialidade.  Num sonho você tem essa potencialidade onde tudo é possível. De repente você é aquele corpo na cadeira odontológica e quando o dentista se aproxima, uau!, é a Lady Gaga usando um jaleco produzido com restos de próteses dentárias. Mas talvez você esteja no consultório odontológico e um homem de branco e sorriso impecável, liga a...

Sobre como vencer um tornado [as engrenagens]

Ontem estive pesquisando o clima de Edmonton. Precisava a confirmação de que meu homem realmente abriu as janelas de seu Volvo XC90 em meados de setembro. Era fim de verão e o outono começaria no dia 23. Olhando todos aqueles gráficos meteorológicos, descobri um fato interessantíssimo. No dia 31 de julho de 1987, um tornado de intensidade F4 atingiu  Edmonton. Naquela tarde algo de muito raro aconteceu. Ao contabilizar os 27 mortos e os milhões em perdas econômicas, o Canadá pode adicionar o evento no seu diário de piores desastres naturais. O evento ficou conhecido como Sexta-Feira Negra. Foi então que cheguei em uma informação bem específica sobre aquele dia. O tornado terminou por volta das 20:00. O prefeito Laurence Decore deu uma coletiva. Lá pelas tantas, ele disse algo, referindo-se a cidade de Edmonton, que se tornaria um slogan não oficial para os edmontonianos: “A cidade dos campeões”. Ao acessar aquela informação histórica, vi o prefeito ficcionalmente ...

Dan encontra Dan [entrevista]

DP: Seus diálogos são bem soltos. DP: Sim. DP: Fiquei confuso em alguns momentos, sem saber quem estava falando. DP: Sim, é isso. DP: É isso? DP: Sim, é isso. Eu poderia citar aqui alguns autores que me ajudaram nessa escolha. Mas eu vou falar apenas sobre uma obra chamada “A estrada”, escrita pelo Cormac Mccarthy. Vou resumir bem a história: temos um pai e seu filho, num mundo pós-catástrofe e eles estão vagando nesse cenário sombrio e chuvoso e nevado. Então os diálogos estão ali (Você diria que soltos) e por vezes é preciso voltar para saber quem está falando e mesmo assim nem sempre eu sei se é o pai ou o filho. DP: Imagino que você vá explicar. DP: Sim, eu não terminei. Não saber quem diz nos abre a possibilidade de perceber que poderia ter sido qualquer um dos dois. Eles já estão há tanto tempo nesse mundo (Mais de ano) e são tão dependentes um do outro que qualquer um dos dois poderia ter dito o que disse. Nós, enquanto leitores, podemos escolher e imagina...

Dan encontra Dan [entrevista]

DP: Você é um autor solitário. Escreve pensando em si como leitor final? DP: Se pensasse, não publicaria. Podemos especular que Kafka escrevia para si. Bem, ao menos se pensarmos nos livros que foram publicados postumamente, contrariando um pedido do próprio Kafka de que se queimassem todos os seus manuscritos, cartas, diários. DP: Você é um autor solitário? DP: Ah, era uma pergunta? Pensei que fosse um julgamento. E sendo afirmação, você pode pensar o que quiser e tanto faz. Agora, se quer minha opinião sobre eu ser esse “autor solitário”, sou sim. Entretanto isso é uma meia verdade. Diria que sou um escritor solitário. O ato de escrever, e que não tomem isso como lição, requer deslocamento. Você estará sozinho neste espaço vazio, inevitavelmente. Um pintor e sua tela em branco. Uma fotógrafa e seu cartão de memória vazio. A  outra metade da verdade é que sou multidão. Posso, no ato de escrever, encontrar tantas e infinitas possibilidades que seria uma injustiça di...

Dan encontra Dan [entrevista]

DP: Carol Bensimon não acredita em escrever sobre um lugar sem ter estado nele. DP: Com todo respeito à Bensimon, isso é uma opinião, não um fato. DP: Opinião factual para uma autora que teve sua obra eleita pelo prêmio Jabuti como o melhor romance de 2018. Ela ganhou o Nobel da Literatura Nacional. DP: Ainda assim, é uma opinião. Quem ganhou o Jabuti foi a obra e não a artista e aqui temos um fato. Todavia, compreendo o teor de teu questionamento provocativo. O motivo de tua pergunta é expor o fato de eu não ter estado fisicamente no Canadá, comprometendo assim minha obra. DP: É uma opinião. DP: Pois Lewis esteve em Nárnia? Bradbury em Marte? Orwell na Pista de Pouso Número 1? DP: Na fantasia tudo é possível. Mas não sou eu o entrevistado. DP: E o que é a ficção, de todo tipo e sorte, se não uma tremenda fantasia? Veja, se eu digo que em uma pequena cidade do oeste canadense, alguém construiu um castelo utilizando conchas do pacífico, isso é possível não é? Tudo acont...

Corro e desisto de correr [conto]

A ESCULTURA TEM FORMA DE TARTARUGA. Lapidada em cinco centímetros de ágata cor musgo. Textura lisa, como água petrificada. Sabor mineral, como chardonnay de Chablis. O cheiro, um não-cheiro. Rocha musgo, lisa, mineral e inodora. Refogou cebolas selvagens em shoyu de coco. Ingrediente importante no prato principal. Depois, crème brûlée, que harmoniza com qualquer refeição. O resto se pode imaginar. E tanto faz. Na memória os detalhes são lembrança maculada. Quando uma tartaruga marinha é esculpida em pedra inodora, no tamanho que for, ela não significa coisa alguma. Que seja tartaruga de água doce ou jabuti que habita borda de mata. Uma pedra, em formato de tartaruga, nada diz.  Nos detalhes, a lembrança volúvel molda a ingênua memória. Foi preciso explicar isso uma centena de vezes. Quando finalmente se cansou, e desistiu. Antes disso, no entanto, você correu como se correr fosse a única possibilidade. Deixamos a cidade de Nantes, em definitivo, duas semanas dep...

Dan encontra Dan [entrevista]

DP: O romance "Instante Infinito" é ambientado no Canadá. Poderia ser no Suriname ou Cingapura. Teu romance é elitista? DP: Uma pergunta necessariamente esperada. Não digo óbvia, por ter sido construída de maneira pouco comum. Agora, há montanhas nevadas no Suriname? Cingapura tem uma cidade de nome Edmonton? Aliás, Cingapura é o quê? A razão maior, sem qualquer padrão econômico, é bem pessoal: o Canadá foi minha primeira real possibilidade de viver em um país onde a língua nativa não fosse o português brasileiro. Isso acontece em 2005. Eu tinha na época 18 anos e acabava de me formar em Gastronomia Gaúcha.  Como o curso era técnico e o diploma expedido por uma Universidade, logo apareceu um estrangeiro interessado na mão de obra. Era um gentil canadense na casa dos 30. Fui escolhido, eu e outros quatro, dentre um grupo de 70 pessoas. Em breve estaríamos embarcando para a cidade canadense de Edmonton, no estado de Alberta. Preparei todos os documentos e antes de...